sexta-feira, 4 de maio de 2012

A Invenção da Infância



“Ser criança não significa ter infância”. Não poderia haver uma frase melhor para transmitir a idéia deste documentário que mostra as diferenças entre o que é ser criança em uma família que vive em situação de pobreza e outra de classe média no nosso país. O vídeo fala por si só, mas vou fazer aqui algumas considerações sobre questões que me surgiram enquanto estava assistindo.

Logo no início aparece o depoimento de mulheres que tiveram muitos filhos e que perderam alguns deles. É impressionante a forma como elas se referem a isso, como se a morte de crianças fosse uma coisa natural: “morreu... morreu de morte (risos)”. Uma mulher conta que teve vinte e oito filhos e que desses somente seis estão vivos: “esses aí não eram pra ser meu, era Dele, Deus me deu e Deus tomou” “eu acho que tão no céu... os que Deus deixou pra mim tão aí, já grande, já criado.

Para as crianças inventa-se a infância quando lhes permitem brincar, ir a escola, ser criança. É possível notar uma diferença significativa entre as atividades de ambas as classes sociais. Enquanto que nas crianças de classe média as atividades giram mais em torno de educação e lazer (ir à escola, jogar vídeo game, andar de patins, de bicicleta, fazer balé, etc), as crianças em situação de pobreza tem como principal atividade o trabalho. Em relação ao motivo que os levam a trabalhar, aparece a questão da sobrevivência. 

É interessante notar que crianças de ambas as classes sociais, apesar do estilo de vida muito diferente, relatam coisas muito parecidas em relação as suas atividades. Ambas se consideram responsáveis e se dizem sobrecarregadas com as tarefas do dia a dia: “às vezes eu durmo direto por que eu to muito cansada”, “carrega um pouco esse monte de coisa que a gente tem pra fazer” (relato de duas meninas de classe média sobre o excesso de atividades a que estão vinculadas). 

As condições em que vivem as famílias das crianças que estão trabalhando são claramente muito precárias e, muitos dos direitos mais básicos (pra não dizer quase todos) lhes são negados.  Segundo o artigo 6º da Constituição Federal, “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.  E ainda, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

A pergunta que fica é: como essas famílias vão garantir os direitos às suas crianças quando tem os próprios direitos negados? Num primeiro momento podemos culpar esses pais pela situação de trabalho infantil em que as crianças se encontram, mas acredito que a questão seja muito maior. Essa negligência (se é que assim se pode dizer) por parte dos pais é resultado de uma série de fatores que, como já dito, estão associados à negação de muitos outros direitos básicos. É difícil pensar que em pleno século XXI, enquanto se fala em taxas muito reduzidas de mortalidade infantil, uma mulher relate ter tido VINTE E OITO filhos e que somente seis tenham sobrevivido.

Voltando a questão do trabalho infantil, é preciso pensar nos riscos a que estas crianças estão expostas: “o meu trabalho é quase o mesmo dos adulto... é uma vida de adulto... trabalho duro, perigoso, a pessoa pode se cortar, furar um olho.... as vezes se corta, se fura”. Além disso, muitas estão fora da escola para poder trabalhar, mas será que é possível pensar em garantia de direitos sem acesso a educação?

Outra coisa que chamou atenção é que se por um lado o trabalho aparece naturalizado na vida dessas crianças (“eu acho que eu trabalho porque não tem jeito, tem que trabalhar mesmo”, “se a pessoa fica em casa é muito mais pior porque não ganha nada”) por outro elas tem consciência da sua condição de pessoa em situação peculiar de desenvolvimento (“criança não é que nem adulto, as crianças não deviam trabalhar não, mas não tem jeito”.

Para concluir, talvez seja possível pensar esses indivíduos como “crianças do século passado”, considerando que à não tanto tempo atrás, a infância que nós conhecemos, como fase especifica do ciclo vital nem mesmo existia, e as mesmas eram consideradas como “mini adultos”. Diante disso, é triste constatar que por motivos socioeconômicos estas crianças não tenham acesso as conquistas que vieram com a mudança de perspectiva do nosso século com relação a infância.


Referências:

Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm

Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Exploração sexual de crianças e adolescentes

Depois de um tempo sem atualização do blog, o texto de hoje vai abordar uma questão bastante delicada e, porque não dizer, polêmica: a exploração sexual de crianças e adolescentes. Num primeiro momento cabe aqui definir o conceito de exploração sexual. “A exploração sexual comercial infantil é todo tipo de atividade em que as redes, usuários e pessoas usam o corpo de um menino, menina ou de adolescente para tirar vantagem ou proveito de caráter sexual com base numa relação de exploração comercial, de poder e declara que a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é um crime contra a humanidade” (Leal, 1999 apud Libório e Sousa, 2004, p. 22).

Você já parou pra pensar o que leva uma criança/adolescente ao mercado de exploração sexual? Você compartilha de idéias do tipo “ele(a) se prostitui porque quer” ou “estava pedindo pra ser estuprado(a)”? Se sim, precisamos discutir outras questões antes de falarmos sobre as causas/motivos que levam essas crianças/adolescentes a serem explorados sexualmente. Talvez você esteja achando estranha a forma como estou me referindo ao tema (ex.: serem explorados sexualmente). Isso mesmo! Crianças e adolescentes não se prostituem, eles são explorados sexualmente. O termo prostituição infanto-juvenil foi abandonado por implicar numa possibilidade de escolha voluntária, ocultando o caráter de comportamento sexualmente abusado.

Muitas vezes nem as próprias crianças/adolescentes tem noção disso. Em uma pesquisa, quando perguntadas sobre essa questão (se estavam sendo explorados) 60,3% responde que “não”. Segundo Diógenes, “o juízo de valor e o senso comum sancionam incondicionalmente quem é inocente ou merecedor de culpa e repulsa, ou mesmo quem merece o cárcere ou a liberdade dessa cadeia ilógica que oprime e comercializa sonhos e indivíduos” (2008, p. 51). Sendo assim não surpreende que os próprios envolvidos, que na verdade não vítimas (isso mesmo!) não reconheçam seus direitos e, muitas vezes, vejam a si próprios como merecedores da situação.

A rua, espaço ocupado por essas crianças/adolescentes, também apresenta uma série de contradições. Diógenes aborda muito bem essa questão quando coloca que as crianças e adolescentes inseridos nesse contexto de exploração sexual “não são, simplesmente, meros transgressores sociais ou vítimas em potencial de violências muitas durante a vida. Mais que isso, são heróis lúdicos que brincam entre os riscos do ato de fazer programa e a dor da violência iminente. Eles não perderam por completo a fantasia e a ludicidade. Apenas a recalcaram nalguma gaveta imaginária ante a emergência e os conflitos cotidianos, e, quando podem, mesclam os riscos do dia-a-dia das ruas a formas diversas do brincar e do rir” (2008, p. 52).

É necessário ter muito cuidado ao falar nas causas de exploração sexual, afinal, são muitos os fatores envolvidos: sociais, econômicos, culturais, etc. No que se refere ao gênero, a maioria (68,3%) é do sexo feminino. É preciso ter cautela ao interpretar esse dado para que não nos deixemos tomar pela idéia, ainda bastante difundida na nossa sociedade, de algumas mulheres “pedem pra serem abusadas porque se oferecem, usando roupas curtas, etc”. Sendo assim, o gênero não seria a causa da exploração sexual, mas pode ser considerado um fator de risco.

Outro dado alarmante é relativo à inserção na escola. Segundo a pesquisa mencionada anteriormente, 75,3% das crianças/adolescentes inseridos na rede de exploração sexual não freqüentam a escola. De acordo com a autora da pesquisa, a escola representa para essas crianças/adolescentes uma conquista a longo prazo e acaba sendo colocada em segundo plano diante da urgência das necessidades e vivências da rua. Afinal, a prioridade passa a ser a sobrevivência.

Nesse sentido, torna-se indispensável mencionar em que condições sociais vivem essas crianças/adolescentes. Na pesquisa foi identificado que a maior motivação de entrada e permanência na rede de exploração sexual é econômica. Junto disso, está o imaginário popular de facilidade em ganhar dinheiro com a venda do próprio corpo: “riscos devidamente calculados e controlados, pagos sob a perspectiva maquiavélica de que ‘o fim justifica os meios’. E, segundo essa lógica, valeria a pena, pois os lucros econômicos seriam vultosos” (Diógenes, 2008, p. 66).

Outros fatores como drogadição, laços familiares fragilizados ou rompidos, baixa auto-estima, pouca escolarização, medos, angústias e sofrimentos, por exemplo, estão vinculados à entrada e permanência de crianças e adolescentes na rede de exploração sexual. Segundo o artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Diante da difícil realidade que está posta diante dos nossos olhos a pergunta que não quer calar é “o que fazer para garantir esses direitos?”. Certamente a resposta envolve uma série de questões como, por exemplo, em termos de educação e políticas públicas.

Pra finalizar (o texto não a reflexão), vale citar o artigo 4º do ECA que diz que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. E de novo a pergunta: o que fazer para garantir esses direitos? Como cidadãos, temos o dever de denunciar os casos de suspeita de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. É preciso romper com o pacto de silêncio que encobre as situações de abuso e exploração contra crianças e adolescentes. Não se pode ter medo de denunciar. Essa é a única forma de ajudar esses meninos e meninas. A denúncia é gratuita e anônima e pode ser feita através do Disque 100. Faça sua parte!

Referências:

Diógenes, G (2008). Os sete sentimentos capitais: exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. São Paulo: Annablume.

Estatatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm

Libório, R. M. C. & Sousa, S. M. G. (2004) A exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil: reflexões teóricas, relatos de pesquisa e intervenções psicossociais. São Paulo: Casa do Psicólogo.